domingo, 8 de fevereiro de 2015

Carnavalização


Tinha ido ao bloco de carnaval sem pensar na vida. Não eram planos que vinham a sua cabeça naquele momento, era a carne. Sim, instintos à flor da pele. Era o corpo que falava, tepidamente, ao som de um remix de marchinhas de carnaval. Alcoolizado, não mais respondia por sua identidade. Era um avatar abastecido pelo inconformismo de ser deixado nas vésperas do resultado do concurso para professor efetivo de uma universidade pública. Não eram as teorias botânicas que agora estavam em diálogo com a sua biologia? Não era um momento para teorizações. O passado o tinha feito mais teórico do que prático, um mártir do inconfessável, do silêncio e solidão, sem catarse. Entre os olhares, entre pessoas, um único sentimento brotava, a incompletude. Andava sem as pernas. Na verdade, o corpo era carregado pela justiça mórbida que o álcool lhe proporcionava. Ela, onde estava? Tentava reconhecer na morena que agora passava um rosto familiar. Por quanto tempo tinham vividos juntos? Simplesmente, o tinha deixado. O concurso tinha sido opção dela. Queria ele apenas continuar como assessor do pai nos assuntos administrativos, mas ela tinha ambição. Hoje terça, na sexta sairia o resultado final. Uma carreira promissora. Solidão. Depois o pós-doutorado no exterior. Solidão. Depois o reconhecimento, uma honraria. Solidão. As teorizações sobre um mundo objetivo, à ponta do cálculo, não resolveriam seu dilema. Mas o carnaval sim. A vida, naquele instante, dava um passo de frevo. Estava passista inóspito da inconclusão. Seu desejo era matá-la. Mas ele sabia que isso era impossível. Não teria em seu sangue o vestígio de cangaceiro que seu bisavô tinha deixado na família. Era justiça que se clamava. Mas onde ela está agora? Aquele verão deveria ter acabado na cama e não no telefonema infame. Olhos de catuaba. Na adolescência, naquele grupo de jovens na igreja. Não imaginava que isso pudesse ser diferente. Eram juras eternas. Ela se enganou, buscou dramatizar a felicidade ao lado de um rapaz de sonho pequeno. Tudo que ela queria era a glória dos altares. Modéstia. Vivia de pernas cobertas, blusas sem decote, e palavras de sabedoria. Afinal de contas, todo este teatro parou no telefone, há alguns segundos. Um ‘grand finale’. Numa noite de calor, às vésperas do ano novo, tinha feito o planejamento estratégico para uma grande empreiteira. Ao som estalado de beijos tinha desenhado a casa, batizado os filhos, marcado agendas para uma taça de espumante que sela as vidas e seus tesouros. Como era engenhosa com aqueles olhos de catuaba. O rapaz queria estar sóbrio de si mesmo, de seus sonhos pequenos, mas se deixou embriagar. Como é que ela pôde? Amor, você sabe que vou ser toda tua, né? Mas, por enquanto, modéstia. Um amor nos tempos da devassa alheia. Estava de pequena bolsa velada. Veste guardiã da vida. Sedas e um grosso oxford tapavam um motivo de alívio e cura das misérias humanas. Um réveillon transpassaria o ano velho teatralizado. Protagonista de fama, teria causado identificação em toda família, menos na irmã dele. Certa vez, a irmã tinha dito que ele saísse dessa. Só você que não vê, mano. A coisa dessa aí é outra. Podia ser tudo, podia ser outra mulher, mas que não fosse o dito ao telefone. Mas que outra? Dinheiro? Talvez pela irmã ser uma solteirona aos 35 anos, um caso com um homem casado, um incesto com ele na adolescência, uma vida de gerente de banco, livre de tudo, teria o direito de tecer os fios do seu destino. O rapaz não tinha tanto dinheiro, tinha um pouco de beleza e vários contatos com quem podia contar na necessidade. Era careta, mas tinha bons amigos. A irmã estava certa. Ela estava em outra. No telefone um alô despretensioso. No carnaval o alô ecoava ao som ritmado das marchinhas. Em cada grito, em cada gargalhada, um alô. Você está aí? Ansioso pelo resultado do concurso, disse que estava. Mas, durante o bloco ele não estava nem era. Pensou em quebrar a garrafa e cortar os pulsos. Viu a polícia. Seria preso ou morto pelo intento. Um grupo de bêbados entoavam a oração do abismo – “oh, meu bem não faça isso comigo não”. Uma lágrima. Estava à flor da pele com seus instintos, mas era nela que pensava. Corpo, som e droga entraram em êxtase sobre aquela existência de identidade perdida. Olha, quero que você escute bem. Ele escutava tudo naquele momento. No bloco, estava surdo. O som o tocava pela vibração, mas a audição estava perpetuada com uma única frase. Um mantra de eterna execução. Eu estou indo embora. O coração tinha parado. Um réveillon tinha feito a vida dançar, mas a música parecia que ia ser trocada, e o par desfeito. Lembrou-se de quando era criança. Na casa da tia passava as férias, sua prima o adorava. Brincavam até seus corpos não aguentarem mais e pedirem arrego no colo materno. Não eram primos naquelas férias. Pareciam uma pessoa só com a caixa da felicidade nos brinquedos. Não bonecas ou carros ou bolas, mas folhas. Brincavam com as folhas do quintal. Brincava com a menina por obediência à mãe. Vivia a personagem. No fim das férias, disse que precisava ir embora. A prima tornou-se lamento. Uma febre incorporou-se na pequena mulher. As férias tinham acabado para ele também com o telefonema. Era personagem também? Não, não poderia ser. Se tinha dado em corpo, sangue e alma. Não quis dizer antes, pois tinha medo que você fizesse besteira. No natal, tinha feito uma declaração de amor, em juras eternas à amada. A família se espantou. Até parecia que o amor era um causo na vida do jovem. Amava, mas, com reservas – era o que pensava o pai e a mãe. Aplausos por todos, descrença pelos produtores da prole. Mas, poderia ser verdade. Estou neste momento indo para o convento das irmãs consoladoras, darei entrada no noviciado. Choques entre o céu e a terra. Febre. O telefone desligou. Amor, amasso, amargo. Não estava no carnaval, estava na quaresma. Páscoa jamais. Um litro de vodca se esvaziava naquele momento. A praia a vista. Uma miragem. Um sopro. Um novo vigor: Armando caminhava sobre as águas.